quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A Trajetória Revolucionária de Cesare Sartori


Misto de médico e antropólogo, Cesare Sartori foi um italiano de tendências revolucionárias que se fixou no começo do século 20 na cidade catarinense de Lages, onde logo mostrou preocupação pela população pobre e negra. Colaborando com a imprensa socialista, especialmente o jornal La Scure, editado na região sudeste, teceu críticas que não pouparam o clericalismo, assim como, o militarismo.
A imprensa escrita foi durante décadas um dos principais instrumentos de informação, entre os mais diversos segmentos sociais, e no Brasil da Primeira República, os jornais de cunho operário, ora socialistas, ora anarquistas tornar-se-iam num importante mecanismo de luta social, publicando denúncias e reivindicações que iam do aumento de salários à superação da sociedade capitalista. Periódicos tais como A Plebe, A Lanterna, A Voz do Trabalhador, entre outros que pela contundência de suas ações, mesmo frente a épocas de forte repressão ao sindicalismo combativo, e a militância política do operariado, marcariam a história das primeiras décadas do século 20, pela ousadia de suas lutas.
Graças a tal imprensa social nos deparamos, com um mosaico de experiências que produziram o que poderia ser chamado de uma cultura de contestação, interligada por diversas regiões, como percebe-se na relação do médico italiano Cesare Sartori que residia em Lages (Estado de Santa Catarina) com o periódico La Scure publicação redigida em italiano e editado no eixo São Paulo-Rio de Janeiro. Jornal este, fundado em 1910 pelo gráfico Alceste De Ambris e que apresentava-se como uma publicação sem vínculos com partidos.
Tal posição autonomista frente a interesses partidários defendida por este jornal correspondia ao programa sindicalista revolucionário, do qual La Scure era um dos importantes porta-vozes. Essa tendência sindical tinha como modelo político de atuação as diretrizes aprovadas no congresso da CGT (Confédération Générale Du Travail) francesa de 1906, desta forma, “seus objetivos centrais eram organizar os trabalhadores na defesa de seus interesses morais, econômicos e profissionais, sem associar essa luta a qualquer partido ou tendência política”. (TOLEDO, 2004, p. 49/50).
Sobre Cesare Sartori, sabe-se que nasceu em 1867, em Vicenza na Itália, formando-se em Medicina em 1893 pela Universidade de Pádua. Reportando-se a sua vida política na Itália, seu colega de ofício César Ávila escreveu: “aprendeu com Malatesta e outros que a propriedade é sempre um roubo; jogou-se contra o capitalista, contra o nobre, contra a coroa, contra o clero. Cuspiu no Rei quando ele passava numa carruagem e lhe atirou uma bengala. Foi preso. Continuou perseguido”. (Jornal de Lages, 1958).
Em 1902 saiu do cais do porto de Suberba rumo ao Brasil em busca - segundo afirmação do jornal La Scure -, “de trabalho, de saúde e de liberdade”, fixando-se a princípio em Urussanga, Santa Catarina, mas “achando o clima desfavorável para sua saúde – diz a tradição que era tuberculoso – tratou de estabelecer-se em Lages, onde o ar da serra lhe seria benéfico” (COSTA, 1982, p. 573) e lá, ao chegar em 1903, criou uma Casa de Saúde (clínica).
O médico (e amigo de Sartori) Cesar Ávila, em conferência proferida em abril de 1958 no Instituto de Educação de Lages, reportou a chegada de Cesare Sartori na cidade da seguinte forma: “magro, já um pouco curvado, alto, nariz adunco, vestindo a roupa que trouxera da Itália, os mesmos sapatos pesados europeus, chegou a Lages vindo de Urussanga, a cavalo. Sua bagagem em dois cargueiros com ´bruacas`. Poucas roupas. Muitos livros e ferros de cirurgia. No meio dos tratados de medicina, livros de filosofia, política, literatura e poesia. Ali estavam entre outros, Malatesta o anarquista, Schopenhauer o pessimista, ao lado de Voltaire e de Dante”. (Jornal de Lages, 1958).
Segundo ainda Ávila, na Itália Cesare Sartori participou do Partido Socialista Libertário, referindo-se com certeza ao Partido Revolucionário Anarquista-Socialista fundado em 1891, o qual buscava “unir todas as organizações e pontos de vista libertário, dispersos, num movimento insurrecional que se opunha a qualquer espécie de governo”. (WOODCOCK, 1984, p. 131). Todavia, nos pertences deixados por Sartori encontram-se cartões datados da década de 1930, referentes à filiação ao Partido Socialista Italiano. Desta forma, as evidências nos levam a crer que Cesare Sartori manteve vínculos tanto com alas socialistas quanto anarquistas, sendo retratado pelos amigos como “materialista, socialista com tendências anarquistas”, assim como revolucionário e humanista.
Seja como for, e graças à estima que nutria pelo jornalismo de engajamento social praticado no Brasil por De Ambris e Vicente Vacirca através do Avanti!, seguido pela Tribuna Italiana e pelo La Scure, Sartori publicou críticas à imprensa italiana no país, denominada por ele de aduladores de “tudo e todos, o governo italiano e o governo brasileiro, os cidadãos honestos e desonestos” que entre “defesas veladas e hipócritas” enchem “os bolsos de vil metal”. Assim, em artigo intitulado A Imprensa Italiana no Brasil Cesare Sartori escreve: “aqueles jornais se intitulam com o nome pomposo de ´coloniais` sob cuja etiqueta se esconde uma recompensa duvidosa. Qualquer um deles deseja ostentar a veste monárquica (...). Essa grande imprensa tem a estranha pretensão de representar a opinião pública da coletividade italiana no exterior, mas em verdade, é a expressão, a porta-voz de uma camarilha de flibusteiros, de aventureiros audaciosos, analfabetos ou semi-analfabetos, alguns dos quais escaparam das prisões da pátria (ah! Pátria ingrata!), outros são corsários sob a lama da superfície, sem se ferir, mas todos animados do mesmo sentimento, guiados pelo mesmo ideal, que é o de fazer dinheiro ´a qualquer custo`”. (La Scure, 1910).
Também manifestando sua repulsa a uma imprensa que considerava propriedade da Igreja Católica e subserviente aos governos italiano e brasileiro, afirmava: “alguns destes jornalecos estão nas mãos de frades e padres, e nesse caso caluniam a Itália, ofendem Garibaldi e chamam o rei de ´bom`, são gente de bordel. E fazem bem em se comportar assim: afinal, o governo italiano subsidia as escolas confessionais no exterior e o Comissariado de Emigração favorece os padres”. (La Scure, 1910).
Mas a grande imprensa italiana e o clero não eram os únicos alvos de seus escritos: em outro de seus textos enviados ao La Scure, tece objeções ao militarismo, defendendo que “os militares de profissão constituem uma categoria especial na moderna Antropologia criminal”, e mais adiante em seu artigo manifesta-se: “contra o exército e as instituições malditas que obrigam um homem honesto a se tornar um canalha por defender a bandeira dos ´seus senhores`, em nome dos quais se justificam os delitos mais brutais”. (La Scure, 1910).
Além de suas contribuições a imprensa social, Sartori nutria grande apego pela Antropologia, assim sobretudo nas décadas de 1930 e 1940 realizou uma gama de estudos sobre a moralidade dos indígenas no Mato Grosso com os Boróros, Terenos e Caingangues, e no Rio Grande do Sul com os Coroados, como em carta escrita ao amigo Werner Naumann, registra: “Há um mês acabei de visitar os Coroados no Município de Getúlio Vargas, e o Cacique Doble (4º distrito de Lagoa Vermelha) – No Rio Grande do Sul. E mais uma vez me convenci de que a moralidade dos Peles Vermelhas, em tese geral, é superior a dos brancos civilizados, e a criminalidade inferior (...), a verdade, nua e crua”. (Carta de 19 de fevereiro de 1942).
A dedicação de Cesare para com os negros, indígenas e pobres de Lages era outra de suas virtudes, pois dificilmente cobrava por suas consultas e às vezes ainda fornecia-lhes os remédios. Assim, ao falecer no dia 12 de julho de 1945 aos 78 anos em decorrência de uma pneumonia, teve seu enterro acompanhado por “pessoas de todas as classes sociais, principalmente da comunidade negra”, sendo que o caixão foi carregado a pé, por membros da população pobre e negra de Lages – em atenção a um pedido do falecido -, segmentos sociais estes, a quem Sartori havia devotado seu altruísmo.
Em 2007 o alfaiate Jayme Garbelotto rememorava: “na calçada, ao lado da ´Alfaiataria Chic`, onde eu trabalhava, quase todos os dias, ali perto do meio-dia, algumas pessoas, inclusive médicos, se reuniam para coversar sobre os mais variados assuntos. Um dia vi e ouvi o dr. Sartori, frequentador assíduo dessas reuniões, dizer ao também médico Aujor Ávila da Luz, um fumante inveterado (...) as seguintes palavras: ´Vou te dizer mais uma vez, Aujor. O cigarro é como o padre. Às vezes faz mal. Nunca faz bem” (GARBELOTTO, 2007, p. 127), desta forma, após sua morte, este homem de idéias fortes que foi Cesare Sartori, encontrava na memória popular lageana, uma sobrevida.


Referências Teóricas:
COSTA, Licurgo. O Continente das Lagens: sua história e influência no Sertão da Terra Firme. Vol 2. Florianópolis: FCC, 1982.
GABERLOTTO, Jayme. Helena. Lages, 2007. (Obra de memórias não publicada).
TOLEDO, Edilene. Anarquismo e Sindicalismo Revolucionário. Trabalhadores e militantes em São Paulo na Primeira República. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
WOODCOCK, George. Anarquismo: uma história das idéias e movimentos libertários. Vol. 2 – O Movimento. Porto Alegre: L&PM, 1984.

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