domingo, 22 de fevereiro de 2009

HÓSTIAS AMARGAS[1]: o anticlericalismo catarinense na imprensa anarquista paulista do início do século XX.[2]


Cleber Rudy




O Brasil das primeiras décadas do século XX seria marcado pelo crescimento urbano-industrial, e pela idéia do “moderno”, que mudaria a fisionomia arquitetônica e comportamental de suas cidades, segundo projeções de índole inglesa e francesa, inaugurando no país o resplandecer do que se denominou Belle Époque. Assim, progressos técnicos, aliciados a ideologia burguesa projetavam seus valores, no concernente ao modo de pensar e agir operário e de suas famílias, visando o disciplinamento e manutenção da “ordem” e do “progresso”, de uma irradiante sociedade republicana nascente e positivistamente constituída, que na contra-marcha dos seus interesses, ver-se-ia cara a cara com conflitos classistas.
Inspirado em tal emaranhado de “essências transitórias”, surgiria à confabulação de estratégias de luta contra a presença do clero na vida social, e seus conchavos com o poder público. Desta forma, principalmente pela imprensa libertária e independente, que surgia nos grandes centros urbanos (em especial São Paulo e Rio de Janeiro), marcados pelo grande contingente de imigrantes italianos, espanhóis e portugueses, dos quais muitos militavam em seus países de origem, em organizações anarquistas[3] e socialistas, proveriam questionamentos a tais instâncias de poder. Pois para estes a Igreja, a religião e por vezes a crença em um Deus eram vistas como superstições, mitos para entorpecer os pobres, e que por via da mentira visavam subjugá-los. E, assim, explorá-los.

É preciso lembrar quanto e como as religiões embrutecem e corrompem os povos? Elas matam neles a razão, o principal instrumento da emancipação humana e os reduzem à imbecilidade, condição essencial da escravidão. Elas desonram o trabalho humano e fazem dele sinal e fonte de servidão. Elas matam a noção e o sentimento da justiça humana, fazendo sempre pender a balança para o lado dos patifes triunfantes, objetos privilegiados da graça divina. Elas matam o orgulho e a dignidade humana, protegendo apenas a submissos e os humildes. Elas sufocam no coração dos povos todo sentimento de fraternidade humana, preenchendo-o de crueldade.[4]

Esse discurso proferido teria como autor, o anarquista russo Michael Alexandrovich Bakunin (1814-1876), considerado um dos mais brilhantes libertários, pelo seu ativismo em rebeliões e revoltas, que sacudiam Paris, Praga e Dresden, e que por sua ação revolucionária, seria várias vezes preso. Homem de temperamento forte que por sua oposição a Karl Marx durante a Primeira Internacional, seria expulso acompanhado de outros companheiros. Após a expulsão fundariam uma organização independente conhecida como a Internacional St. Imier. Entre seus legados à causa libertária, tem-se a projeção do o que fora denominado movimento anarquista histórico.[5]
Apesar da clara separação entre Igreja e Estado, instituída pela República e consolidada pela constituição de 1891 no Brasil, a qual decretava a secularização através da legitimação do casamento civil, da efetivação dos registros de nascimento e óbito em cartórios, de um sistema de ensino laico, assim como os cemitérios deixariam de pertencer a uma única religião, clímax que teria como desenrolar a perda da legitimidade de outrora da Igreja Católica Apostólica Romana enquanto instituição oficial. Acontecimentos que trariam junto de si interrogações acerca da permanência de frades e padres no que concernia a instrução pedagógica e moral de uma população supostamente aliciada pelos perigos da perdição, que poderia ser entendida como o não comprimento dos sacramentos[6], entre outros deslizes “pecaminosos”.
Nesta senda, em Santa Catarina os reflexos de tal momento histórico brasileiro teriam os mais variados impulsos, ou seja, de um lado uma ala assumidamente republicana que extasiada buscava fazer valer os semblantes instituídos pelo novo governo, enquanto por outro lado vê-se agrupamentos marcadamente agregados às tradições monárquicas de padroado, e que almejavam manter-se enquanto instituição de poder oficial, (mesmo não mais o sendo), e desta forma, cerceando a vida da população local, e seus tramites políticos. E é em meio a tal enredamento que nos deparamos com indivíduos que frente à Igreja, alimentados por um enorme descontentamento, manifestariam sua aversão diante do que comumente se referiam como invasão de frades estrangeiros, loyolas[7] e demais segmentos sacros que impregnavam suas vivências.
Sendo assim, cansados de um certo “abstratismo” (o qual deve ser interpretado no sentido de silenciamento, ou limitação repercusiva de suas críticas), tais indivíduos recorreriam à imprensa escrita para denunciar as mazelas levadas a cabo em nome da salvação divina, assim como acerca da dicotomia entre os votos “sagrados” e a prática “profana”.
No jornal A Lanterna[8], de inspiração anticlerical e libertária, editado em São Paulo, que operava como veículo de informação principalmente à classe operária, tendo em sua direção o jornalista e anarquista Edgard Leuenroth, encontramos artigos, crônicas de anticlericais catarinenses, que identificados até certo ponto com seus princípios libertários, ainda como pelo fluir de uma circulação de ampla proporção preferiam recorrer a ele ao invés das publicações existentes em seu próprio estado. Jornal que durante o início da década de 1910 tinha como um dos seus pontos de venda na Ilha de Santa Catarina, a Agencia de Revista do Sr. Valentin Farinhas, localizada na rua República n° 2.
Em Florianópolis durante as primeiras décadas de 1910, publicou-se um jornal de combate ao clero católico, e que emanava um discurso de postura mais amena do que A Lanterna. O jornal intitulava-se, O Clarão[9]. E também perpassaria por temáticas ligadas à maçonaria e ao espiritismo.
O Clarão, surgido em 1911, visava discursar contra os mandos e desmandos dos padres em Florianópolis e cercanias. Seu “xeque-mate” era especificamente contra os clérigos católicos, dando vazão às outras crenças religiosas e demais manifestações humanas míticas regidas pelas luzes do esclarecimento e da liberdade. Seus editores mantinham contatos com o jornal A Lanterna, o qual era distribuído no referido estabelecimento do Sr. Farinhas, onde também era vendido O Clarão.
Mas no concernente ao jornal A Lanterna, um entre seus cronistas nos chama a atenção em especial, mediante sua certa periodicidade de comunicação com este jornal, e pela profusão crítica de seu discurso, por vezes transvasado de essência atéia: C. de Lippe, era como assinava, e a cidade de São José seu ponto de envio.
Seus textos eram mensais e sairiam durante o ano de 1914, numa coluna intitulada, ora por “Crônica de Santa Catarina”, ora por “´A Lanterna` em Santa Catarina”, o que evidencia a circulação do próprio jornal por estas terras, fato comprovado pelas menções no próprio jornal acerca da correspondência e das encomendas remetidas a C. de Lippe. Tais escritos se reportavam a situações ocorridas na própria comunidade e cercanias, (São Pedro de Alcântara, Angelina, Santo Amaro do Cubatão). Situações as quais condiziam acerca das lides dos padres e a desenvoltura do poder destes sobre o cotidiano destas regiões, que se mantinham sedimentadas numa cultura ruralista, da qual os saberes teóricos científicos imbuídos pela modernidade, não faziam parte, e que de certo modo favorecia a emanação dos poderes provenientes da Igreja Católica enquanto única experiência de vida e análise de mundo.
C. de Lippe num primeiro momento manifesta sua preocupação pelo que denomina de crescente invasão de frades estrangeiros em Santa Catarina, fato que o inquietava não por suas nacionalidades, mas por serem do clero, “gênero que as Filipinas, a França e ultimamente Portugal atiraram á praia como elemento mau e principal fator de todo o mal”[10].
Tais dados expostos em sua crônica condiziam com os andamentos que fervilhavam a Europa do século XVIII, embalada pelos ideais iluministas e que adotaria políticas de aversão aos jesuítas, onde, em Portugal, o estadista Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal (1699-1782), expulsaria os jesuítas tanto em seu país como no Brasil, e que junto a Clemente XIV, intercederia pela extinção da Companhia de Jesus; na Espanha, Pedro Pablo Abarca de Bolea, o Conde de Aranda (1718-1798), durante o reinado de Carlos III, instigaria o motim de Esquilache (1767), tendo como objetivo a expulsão da Companhia de Jesus; na França, Étienne François Choiseul (1719-1785), homem de estado, diplomata, conseguiria o banimento dos jesuítas em seu país. Desta forma, quando não eram expulsos, acabavam por ter seus poderes limitados, e sua atuação restrita a conventos, irmandades e mosteiros.
O cronista em voga prossegue:

Como, porém, neste Estado, a população sertaneja, infelizmente, ainda conserva-se mergulhada nas trevas, isto é, sem o menor grau de instrução, eis porque essa negra remessa tem sido quase toda depositada aqui, para desgraça e infelicidade nossa.[11]

Assim, tem-se uma população que perece pela falta de substratos instrutivos, os quais serviriam de justificativa para a introjeção de tais membros provenientes da Companhia de Jesus, e que como se percebe nos idos da Instituição em Santa Catarina, instruir era catequizar, “(...) adultos e meninos, ´se levam à piedade e elegância cristã`. (...) o mesmo fim, (...) educação religiosa, com a palavra de Deus e administração dos sacramentos”.[12] Práticas emanadas como unicum refugium, a massa de “incautas”.
Lippe, ainda no referente aos frades coloca, que:

É esse um individuo perverso e mau; educado desde tenra idade na escola da ignorância e da mentira, está unicamente preparado para, em nome dos deuses inexoráveis e vingativos, embrutecer o povo para melhor explorar e saquear desapiedadamente os mingoados recursos de que ele dispõe.[13]


Análise que visava evidenciar os seminários e conventos, enquanto lugares de articulação de mentiras e demais hipocrisias. Seguindo em sua ótica, demonstrava a perpetuidade acerca da perversão dos deuses, os quais, sob seu caráter acobertava a exploração do povo.
Fato que “deveria prender mais seriamente a nossa atenção, e muito especialmente a daqueles cuja investidura lhes confere atribuições de administradores das coisas publicas.”[14] Não limitando suas objeções, por aí a questão religiosa segundo sua ótica, vulgarmente falando, seria caso de polícia:

Os governantes perseguem os cáftens e todos aqueles indivíduos que julga capaz de perturbar a paz e tranqüilidade publicas, e isto independente de mais formalidades que evidentemente constatem a veracidade de suas suspeitas. E por que, perguntamos nós, não perseguem ou pelo menos não exercem sua vigilância sobre os frades (...)?[15]


Outrossim, patenteava os votos instituídos pela República, que desvinculavam relações coniventes de cooperação pública entre Igreja e Estado, mas os quais nem sempre eram efetivados na prática, evidenciando uma República que perecia de maturidade e suficiência para desatrelar-se por completo das antigas tradições monarquistas, no referente a situação eclesiástica que assolava o país,

Mas, o que vemos? Os poderes públicos em completa ligação com a Igreja Romana: ora subvencionando instituições puramente religiosas com caracter de hospitais, onde doentes de todos os credos que teem a infelicidade de lá ir parar, são obrigados a sofrer, além da dor física, as cruéis torturas morais das rezas e confissões; ora lançando mão dos dinheiros públicos, que representam a economia e o sacrifício do povo, para compra de luxuosos palácios para bispos, e, finalmente, - até certas câmaras municipais do interior, cujas rendas são diminutissimas, concorrem com regular verba para manutenção de irmandades e “folias” do Espírito Santo ![16]


Desta forma, além do dinheiro saído dos cofres públicos para erigir hospitais, ministrados pela Igreja e festins religiosos, o cronista creditava a tais instituições, o papel catalisador de propaganda cristã, facilitada pelo desespero infermicida de seus internos, que daria vazão (condicionada), de piedade moral e fé exacerbada.
Em outra de suas crônicas C. de Lippe, tece sua analogia acerca dos “fanáticos” do sertão, ligados ao Conflito no Contestado[17], e o fanatismo reinante em sua própria cidade e demais cercanias, patrocinado pelos frades, como se pode ver neste trecho de seu escrito intitulado “Os fanáticos sublevados no sertão”:

(....) O governo estadual tem lançado mão de todos os meios brandos para restabelecer a paz e a tranquilidade naquela região ora fragelada pela peste religiosa, sendo, porêm, todos eles improficuos ante a feroz resistência com que aqueles sertanejos ingênuos e ignorantes defendem as suas divindades protetoras: Deus, S. Sebastião e o seu monge José Maria, que os assiste, como firmemente crêem, a todos os combates que houverem de travar com as forças legais.
Ora, isto é o cumulo da estupidez !
(...) Poder-se-ia apelidar de fanáticos os revolucionários de Taquarussú se não existisse maior grau de fanatismo em Angelina, S. Pedro e Santo Amaro do Cubatão; porque aqueles resumem sua crença em Deus, S. Sebastião e no monge e estes, além de acreditarem em maior numero de absurdos, ainda carregam, dependurado ao pescoço, pedaços das velhas roupetas dos frades, que as adquirem por elevado preço.[18]


Pode-se perceber que, para ele, o “fanatismo” religioso que se vê manifestado em sua localidade e adjacências mediante as lides dos padres, tomava contornos tão impactantes e hediondos como o que se presenciava no sertão Contestado, abalado pelo messianismo. Crença que aflorava pelos sertões catarinenses e que constantemente sofreria ataques por parte dos padres pelo fato dos “monges” atuarem como poder paralelo.[19] Ainda para Lippe, tal guerra seria fruto do veneno religioso[20]. Crônica que em seu bojo, evidenciava sua aversão e descrença frente ao culto religioso constituído pela existência de Deus, santos e a utilização de relíquias[21], como bem expõem ao referir-se aos pedaços de velhas roupas oriundas dos frades, aos quais uns grupos de pessoas trazem presos ao pescoço, e que aos seus olhos tomam contornos de sórdido, assim como de absurdo mediante os valores de compra inóspitos atribuídos a tais objetos.
Ao prosseguir elucida:

Felizmente não são os heréticos, os excomungados pela santa igreja católica, que promovem com a sua descrença essas guerras fratecidas que tanto fazem esgotar os cofres públicos e exterminar as vidas; são exactamente os clientes, nos quais os frades, auxiliados pelo próprio governo, introduzem no seu bestunto doentio a absurda crença de que Deus impõe tais sacrifícios em compensação de futuros gosos celestes.
Diz a Igreja: quem não crê morre; e nós agora podemos dizer que, quem toma uma elevada dose de crença incorre no mesmo perigo.[22]


Mas sua ânsia de oposição não parava por aí, sempre que julgava necessária, vinha a tona, desafiando os meandros de uma sociedade embebedada de Filosofia Cristã, como neste artigo, intitulado “O fanatismo em São José”[23], no qual tem-se a continuidade de suas críticas a esta questão. Os responsáveis pela ignorância do povo, segundo Lippe, são identificáveis pela batina, pois se a população vive distanciada dos caminhos da razão, (a qual sempre ganhou lugar de destaque entre os anticlericais e livres pensadores), este distanciamento seria fruto das investidas dos frades, ao imporem a fé aos dogmas como única instrução. Também tomam nitidez um embate envolvendo a “emancipação do espírito humano” cultuada pelos que vivem as margens dos preceitos da Igreja versus a degradação do ser humano mediante os ensinamentos ministrados pelos frades. Afrontamento que faria suas vítimas, como o fora no concernente aos sócios da Sociedade Musical de São José.

Em tudo tem aqui o frade ingerência.
Notamos ultimamente num centro de diversão recentemente criado,o sinistro dedo do frade lançando o pomo da discórdia entre seus associados, (....)[24]


Como desfecho de tal intervencionismo alguns sócios teriam sido banidos de tal instituição, sob alegação de não serem casados religiosamente. Álibi ao qual não prescindia com os auspícios da República[25], e que elucida uma relação que ainda por completa não se encontrava resolvida entre o poder sacro e o poder laico.
O intervencionismo dos frades na vida social teria ainda outros desenlaces, como podemos ver neste trecho:

(....) um dos mais respeitáveis negociantes daquela fanática freguezia[26], tem sido bastante perseguido pelo tal jesuíta (...), que além de ameaçar com a perda de absolvições,com excomunhões e outras babozeiras do mesmo quilate, que nada mais conseguem senão redicularizar o seu caracter de homem sagrado, tem feito retirar a freguesia do seu negocio,e isto pelo facto daquele cidadão não obedecer ao horario determinado pelo mesmo padreco, de fechar o seu estabelecimento ao anoitecer e não vender foguetes depois dessa hora.[27]


Desta forma, mais uma vez, vemos sua oposição diante de um poder emanado pelo clero, e que intercede na vida local de alguns cidadãos, pelo fato de transgredirem preceitos e “leis” instituídas pela Igreja, a qual se via enquanto eminente catalizador do poder, da ordem e controle social. Para tanto, Lippe noutro de seus escritos, evoca:

(...) o dever de reunirmo-nos em uma forte associação, secreta se preciso fosse, para que possamos auxiliar-nos reciprocamente,e exercermos uma ação mais eficaz e sem vacilações contra essa horda de vagabundos, cáftens e usurpadores da paz e tranqüilidade (...)[28]


Sendo assim, ao que tudo indica, sua idéia de associação, organização estava aliciada a todo um movimento que tomava corpo a partir da década de 1910, mediante a morte do pedagogo libertário e espanhol Francisco Ferrer y Guardia[29], executado por influência da Igreja Católica. Desta forma, a Europa e o Brasil foram tomados por ímpetos anticlericais, que almejavam criar escolas, associações, ligas, com a finalidade de discutirem e se mobilizarem contra as práticas do clero e em prol do racionalismo. Mas até onde nossa documentação permite sondar, tais planos em solo catarinense não se concretizaram[30].
E nesta senda, ele expõe, “É, portanto, necessário que os anticlericais se unam, para que dessa união resulte a força tendente a atenuar a marcha desse animal feroz”.[31] Preocupações que trariam consigo a indiferença com a qual por vezes era tratada a propaganda anticlerical principalmente em solo catarinense, devendo assim, a mesma ser superada, já que era o único recurso, segundo ele, disponível de combate a uma situação que cada vez mais tomava contornos agravantes, diante da dominação clerical.
Sobre tais preocupações, o jornal A Lanterna, de 1914 instigava, “Anti-clericais ! Livre-pensadores ! Organizai os vossos grupos. É necessário fundar a Federação Brasileira do Livre-Pensamento.”
Como atento observador, C. de Lippe não deixava que acontecimentos de progressão religiosa local escapassem de serem acometidos de comentários, e para tal tarefa sempre contara com sua consorte: a ironia. Então ao tomar nota acerca da despedida de um frade local, chamado Domingos, e do cortejo lacrimoso que evidenciava seu adeus, ele escreve,

No fim do tiroteio de saudações, foi todo o pessoal manifestante alarmado com um enorme milagre que o deixou boquiaberto.
Do alto de uma enorme cruz, a bela imagem de um Cristo que lá se achava suspensa, dirigiu ao Mingote o seu ultimo adeus de despedida. Moveu-se milagrosamente do seu pesado madeiro, desprendeu do cravo a sua descarnada mão direita, deixou-a cair pesadamente sobre a articulação do braço esquerdo, cerrou o punho e gesticulou religiosamente para o seu explorador, proferindo estas santas palavras: Adeus, devorador do meu sangue e amante das minhas esposas! Aceita esta preciosa “fruta catarinense” que te envia o povo anticlerical desta paróquia, para te alimentares durante a tua excursão de embrutecimento por outras paragens de imbecis. Que ela se multiplique como os pães e os peixes dos evangelhos. Amem.[32]


Alegorias e simbolismos religiosos que nas mãos deste livre-pensador se convergiam, em instrumentos de crítica da própria ordem que os exalta, pois se a maioria da população preferia se manter indiferente as possíveis práticas hediondas de um padre, caberia a Cristo[33] travestido de um anticlerical, afrontá-lo com o gesto de uma “banana” e inquiri-lo sobre sua conduta. Contornos de uma linguagem que lembram a mesma utilizada na França do século XVIII e XIX, pelo Marquês de Sade[34], o qual valia-se, em suas obras, de elementos sacros ao efetuar sarcasticamente sua oposição aos preceitos da Igreja e demais divindades.
E nosso cronista deixa-nos o seguinte escrito ainda ao referir-se a Igreja Católica e seus preceitos, antes de despedir-se, “(...) seita intolerante, sanguinária e inimiga de tudo quanto é suscetível de trazer a luz da verdade ao espírito humano (...)”[35]. Palavras que remetem a tradição iluminista de Voltaire[36] e Diderot[37], onde a razão é a luz, lanterna guia de todo conhecimento e emancipação humana, frente às mazelas de uma sociedade alicerçada sobre superstições e demais engodos patrocinados pelos padres.
Acerca deste cronista os únicos vestígios que temos são as suas crônicas, publicadas na imprensa paulista, A Lanterna. Em que trabalhava? Como vivia? Quem era? São dados que nossa documentação não permite vislumbrar, já que possivelmente valia de um pseudônimo. C. de Lippe, ainda nos fomenta certas divagações, onde além de suas crônicas, publicadas em São Paulo no jornal anarquista e anticlerical A Lanterna, tem-se uma carta publicada no jornal anticlerical de Florianópolis O Clarão, que mesmo sem ter o nome do autor, só a localidade (São José), pela linguagem e radicalismo empregados identificamos como sendo de sua possível autoria,

Illm°. Sr. Redactor

(...) o apparecimento do seu pequeno mas denodado “Clarão” tem aumentado o numero daquelles que como eu estão dispostos a pegar em armas para expulsar do solo brasileiro esta peste negra ou bando de vagabundos (...)
S.José, 22-1-1912


Lippe, se realmente este era seus sobrenome, seria um dos tantos imigrantes alemães neste estado? Seria possível, mais nossas buscas não evidenciaram remanescentes desta família, ou que ainda se utilizassem deste sobrenome, caso o realmente o fosse. Ou C. de Lippe, seria seu codinome? Se o era, tudo indica que fora emprestado do príncipe alemão, teórico militar, político e social, Conde Lippe, o qual fora marechal do exército português, mediante indicações do Marquês de Pombal. Inquietações, estas que, ainda não encontram substrato de verdade(s).


[1] Nome emprestado da obra de José Gavronski, publicada em São Paulo pelo jornal A Lanterna em 1935.
[2] Este artigo é uma versão resumida de um dos capítulos da monografia “Entre a luz e as trevas: cultura libertária e aversão ao clero em Santa Catarina (1910-1940)” desenvolvida durante a especialização em História Social na Udesc entre 2004 e 2006, sob a orientação do professor Paulo Rogério Melo de Oliveira. Texto publicado originalmente na Fronteiras - Revista Catarinense de História nº 15, junho de 2007.
[3] Para maiores detalhes acerca da imigração européia e das lides libertárias, consultar , MARAM, Sheldon Leslie.Anarquistas, Imigrantes e o Movimento Operário Brasileiro.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979..
[4] BAKUNIN, Mikhail. Deus e o Estado. São Paulo: Cortez, 1988. p. 26.
[5] Escrito efetuado com base na obra: WOODCOCK, George. Os Grandes Escritos Anarquistas. 4ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1990, p.345/ 346.
[6] No século XII, os sacramentos foram estipulados em sete, os quais eram: batismo, penitência, eucaristia, crisma, casamento, ordenação e extrema-unção.
[7] Termo derivado do nome São Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus em 1540, o qual elevaria o Brasil em 1553, à categoria de província jesuíta, sendo assim, a denominação loyolas reporta-se aos jesuítas, frades, sendo tal termo, empregado pelos anticlericais do jornal O Clarão, publicado em Florianópolis, nas primeiras décadas do século XX.
[8] Foi fundada em 7-3-1901, durando até 29-2-1904, sob a direção de Benjamin Mota (1ª fase); reaparece em 17-10-1909 indo até 19-11-1916, sob a direção de Edgard Leuenroth (2ª fase); e em 13-7-1933 iniciou sua terceira fase que foi até 10-1935, sob a direção novamente de Edgard Leuenroth. Elaborado com base na obra: RODRIGUES, Edgar. Pequena História da Imprensa Social no Brasil. Florianópolis: Insular, 1997.
[9] Jornal publicado na cidade de Florianópolis, Brasil (em Portugal no começo do século XX editava-se um jornal com o mesmo nome, consagrado as idéias libertárias do espanhol Francisco Ferrer, o qual tinha circulação no Brasil). O Clarão, catarinense, teve sua 1ª fase iniciada em 20 de agosto de 1911, indo até 4 de julho de 1914, e em sua 2ª fase indo de 28 de agosto de 1915 até idos de 1918.
[10] A Lanterna, São Paulo, 21/ 03/ 1914.
[11] A Lanterna, São Paulo, 04/ 04/ 1914.
[12] LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. (vol. VI). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, p. 471.
[13] A Lanterna, São Paulo, 21/ 03/ 1914.
[14] idem
[15] A Lanterna, São Paulo, 04/ 04/ 1914.
[16] A Lanterna, São Paulo, 21/ 03/ 1914.
[17] Conflito desenrolado no planalto catarinense entre 1912 e 1916, de cunho milenaristas (crença no milênio), ou seja, o reino dos mil anos de Cristo.
[18] A Lanterna, São Paulo, 16/ 05/ 1914.
[19] Para maiores detalhes, consultar, STULZER, AURÉLIO (FREI). A Guerra dos Fanáticos (1912-1916). Vila Velha/ Petrópolis: Vozes, 1982.
[20] O viés do fanatismo, enquanto fator monolítico no Conflito no Contestado, marcaria uma gama de estudos acerca do episódio.
[21] Para buscar elucidar tais invenções e artimanhas, recorremos a uma passagem de, RODRIGUES, Edgar. Socialismo e sindicalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1969. Onde, “Desde os primórdios do seu aparecimento sobre a face da terra, o clero se organiza no poderoso quartel general de Roma e ali elabora planos e expede-os para as suas sucursais espalhadas pelo universo.
No ano 120, inventaram a água-benta; no ano 157, a penitência; no ano 325, a páscoa da ressurreição; no ano 375, o culto dos santos; no ano 391, a missa; no ano 400, as encomendações dos mortos; no ano 550, o óleo santo; no ano 593, o purgatório; no ano 600, o primado do papa; no ano 699, o culto da cruz e das relíquias; no ano 800, o beijo na sandália do papa; no ano 933, a beatificação dos beatos; no ano 1000, a canonização dos santos; no ano 1015, o celibato dos padres; no ano 1066, a infabilidade da igreja; no ano 1090, o rosário; no ano 1119, a indulgência; no ano 1160, os sete sacramentos; no ano 1200, a consagração da hóstia; no ano 1204, inquisição (...)”. p.295 .
[22] A Lanterna, São Paulo, 16/ 05/ 1914.
[23] A Lanterna, São Paulo, 21/ 02/ 1914.
[24] A Lanterna, São Paulo, 21/ 02/ 1914.
[25] No § 4º , do Art.72, do Capítulo V, da Constituição do Brasil de 24 de fevereiro de 1891,temos: “A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.” ( www.soleis.com.br/1-Constituicoes0.htm#12)
[26] A freguesia a qual se refere, seria São Pedro de Alcântara.
[27] A Lanterna, São Paulo, 05/ 09/ 1914.
[28] A Lanterna, São Paulo, 21/ 03/ 1914.
[29] Francisco Ferrer y Guardia, era pedagogo e libertário, sendo o criador das Escolas Modernas.Suas escolas foram um das primeiras a utilizar salas mistas (meninos e meninas juntos), sendo os conteúdos elaborados para o desenvolvimento da razão. A Igreja Católica via tais práticas como um atentado aos seus interesses. Vitima de uma trama elaborada entre Governo e Igreja, Ferrer seria fuzilado na fortaleza de Montjuich, em Barcelona, na Espanha, no dia 13 de outubro de 1909.
[30] No O Clarão, nº 16, 2/ 10/ 1911, sairia a seguinte nota, “NOTICIARIO – Consta-nos que por estes dias se iniciará a organização de um Liga anti-clerical.” Mas sobre a mesma não encontramos nada que efetive sua criação.
[31] A Lanterna, São Paulo, 21/ 03/ 1914.
[32] A Lanterna, São Paulo, 13/ 06/ 1914.
[33] Nos meios livre-pensadores, um Cristo de contornos humano e altruísta ganhava apreciação.
[34] Donatien Alphonse François de Sade (1740-1814) – conde e marquês de Sade. O anticlericalismo estava acentuadamente presente em suas obras, as quais eram dotadas de um aguçado espírito crítico e visceralmente contrários aos grilhões das ortodoxias religiosas e morais.(...) Além de atacar com extremo vigor as superstições da religião, tinha especial predileção por demonstrar escárnio pelo papa e pelos demais membros da Igreja. Nota extraída da apresentação efetuada pelo historiador Eduardo Valladares, na obra: SADE, Marquês de. Discursos Ímpios. São Paulo: Imaginário, 1998, p.12.
[35] A Lanterna, São Paulo, 21/ 03/ 1914.
[36] Pseudônimo de François Marie Arouet (1694-1778), escritor e filósofo.
[37] Denis Diderot (1713-1784), escritor francês, um dos maiores “livre-pensadores” de sua época.

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