domingo, 22 de fevereiro de 2009

MILITÂNCIA, SEXO E AMOR:
Discursos e debates sobre sexualidades e papéis de gênero no jornal anarquista A Plebe no ano de 1935.

Ana Claudia Ribas
Mestra em História do Tempo Presente - UDESC





A nossa aspiração baseia-se no esquema anarquista da observação experimentando-a quem quiser, espontaneamente, sem subterfúgios de partidas, de partidos, ou na religião, a nossa escolha é filosófica-literária e marcha para a liberdade, para o amor livre e para a harmonia da espécie humana.

Trecho do texto assinado por F. Accuaviva,
para o Jornal A Plebe em 27/05/1935.


Muito presente entre os operários da indústria paulista e carioca – além dos demais centros industriais brasileiros - durante as primeiras décadas do século XX, encontrava-se as idéias libertárias do anarquismo, seja em greves e mobilizações, seja em lutas por melhores condições de trabalho e de vida para o operariado, ou ainda na discussão sobre a exploração imposta pelo capitalismo.
Os ideários anarquistas, nesse período de grande efervescência, tornavam-se ainda mais perceptíveis por uma imprensa muito ativa, que dentre as temáticas de cunho social que abordava, também trazia em seu interior interessantes discussões sobre o ser humano enquanto um ser global, cuja individualidade precisaria ser respeitada para que uma nova sociedade justa e igualitária pudesse, enfim, nascer. E é a partir dessa perspectiva que o tema sexualidade acabaria por surgir entre as discussões nos jornais anarquistas dessa primeira metade do século XX, uma vez que era compreendida como parte integrante da vida humana, e lugar onde também a liberdade individual também deveria existir [1].
Assim, muitos são os pontos em que o discurso anarquista, em seus periódicos, iria destoar dos demais discursos vigentes na sociedade brasileira, e por vezes, gerando conflitos entre os próprios discursos de militantes anarquistas, pois não se limitava a discutir questões ligadas apenas ao corpo feminino, mas preocupava-se, por vezes, em lançar olhares também sobre os corpos masculinos.
Muitos podem ser os fatores apontados para explicar a presença de tal tema nas páginas da imprensa libertária, mas certamente não há como se desconsiderar que a presença efetiva de mulheres como colaboradoras na produção desses periódicos, deve constar entre os mais significativos. Essa presença feminina não ocorre por acaso, uma vez que no Brasil, assim como em diversas outras partes do mundo ocidental, as mulheres passam a questionar as normas de conduta rígidas que lhes são impostas, assim como sua limitação à esfera privada [2]. Elas, a muito, já participam do mercado de trabalho. Na década de 1930 ganham seu primeiro espaço como eleitora. Já estão presentes nos círculos intelectuais, e a própria moda torna-se mais leve, mais prática, criando uma aura de “liberdade” aos modelos femininos.
O anarquismo acabou por fornecer um espaço político de luta pela emancipação feminina, assim como para uma participação efetiva das mulheres em seus planos de construção de uma nova sociedade[3]. E, neste contexto, algumas personalidades acabariam por destacarem-se, como é o caso da professora Maria Lacerda de Moura[4] que desponta no espaço público discutindo o lugar social destinado às mulheres e conseqüentemente, acaba por promover inúmeros debates sobre questões ligadas a sexualidade.
É interessante notar que, apesar do espaço destinado as mulheres dentro do movimento anarquistas na primeira metade do século XX não se tratar de um espaço de subalternidade[5], isso não significa que havia uma proximidade entre os libertários e libertárias com as feministas. Para os anarquistas o discurso de igualdade deveria ser ampliado, ultrapassando as discussões limitadas à questão sexual, a dominação masculina sobre a mulher, alcançando patamares onde fosse possível efetivar-se uma sociedade igualitária, tanto para homens quanto para mulheres.
Neste artigo, objetiva-se lançar olhares sobre o jornal anarquista A Plebe, analisando os números que saíram durante o ano de 1935, buscando perceber como, neste pequeno recorte temporal, e diante do contexto social e político que se descortinava como pano de fundo, os anarquistas e as anarquistas se posicionavam diante das discussões sobre as sexualidades e os corpos.
Ambiciona-se ressaltar a importância dos debates sobre corpo, moral e sexualidade na divulgação do projeto anarquista, mas de forma alguma se almeja esgotar esta discussão, uma vez que este trabalho é limitado, tanto ao recorte temporal, quanto em seu objeto de análise – pois se trata de apenas uma das muitas publicações anarquistas do período -, restando como objetivo apenas um breve olhar sobre este interessante tema, e deixando maiores aprofundamentos para trabalhos posteriores.

A Plebe e a militância

O periódico A Plebe, certamente pode ser citado como um dos mais conhecidos e importantes periódicos da imprensa libertária brasileira, tanto pela extensão do período de sua existência, como pela abrangência de sua circulação.
Fundado em junho de 1917 em São Paulo, em plena greve geral, tinha por objetivo servir como instrumento de divulgação das notícias desse conturbado momento, mas acaba firmando-se como importante divulgador da doutrina anarquista, mantendo sua circulação até o ano de 1949, com pequenas interrupções motivadas por perseguições policias e problemas financeiros.
Fundado por Edgard Leuenroth, o jornal teve vários redatores, desde o próprio Edgard, passando por Florentino de Carvalho, Manuel Campos, Pedro Augusto Mota e Rodrigo Felipe [6].
Na década de 1930 era Rodolfo Felipe quem dirigia A Plebe, em uma época em que ainda se podia sentir os abalos causados pela “revolução” de 30 e a chegada de Getúlio Vargas ao poder. Era época de intensa perseguição aos anarquistas. Evidentemente, estas perseguições não eram uma grande novidade para os militantes, entretanto foi neste período que inaugurou-se um diferencial, o DEOPS-SP [7] passou a funcionar intensa e sistematicamente, tornando mais arriscada a militância efetiva.
Entretanto, nos anos de 1934 e 1935, tanto o diretor do jornal Rodolfo Felipe, que havia sido preso algumas vezes, quanto o próprio periódico A Plebe, experimentaram um período de “sossego”.
No ano de 1935, muitos eram os temas abordados neste jornal, que iam desde propagandas dos princípios anárquicos, suas ideologias, seus posicionamentos anticlericais e anarco-sindicais, denúncias contra abusos policiais e prisões arbitrárias, informações sobre organizações e encontros sindicais e operários, informativos de greves - tanto no que se referiam a movimentos nacionais quanto no âmbito internacional -, convites para confraternizações e piqueniques entre os militantes da causa anarquista, operários e seus familiares, conferências, até críticas ao Partido Comunista, aos bolcheviques e aos integralistas. Entretanto também a questão da emancipação feminina e a participação das mulheres na vida pública são visíveis nesse momento dentro de A Plebe.
As influências sofridas pelos redatores(as) e colaboradores(as) de A Plebe são incontáveis, e algumas provenientes do movimento anárquico existente fora das fronteiras brasileiras, como é o caso da influência exercida por Emma Goldman[8], que muito inspirava as militantes engajadas em uma luta pelo emancipação feminina, seja por sua vida militante ou seja por seus escritos inspiradores.
Assim como Emma Goldman, muitas eram as mulheres que participavam como colaboradoras nos jornais anarquistas brasileiros, propondo-se a discutir questões sociais a partir do pensamento anarquista. Este engajamento feminino é perceptível em inúmeras passagens, de onde convém destacar algumas, por exemplo, o texto intitulado “Um apelo que deve ser ouvido”, assinado por Isa Ruti. Neste, a autora objetiva lançar uma campanha de auxílio financeiro ao jornal A Plebe, que constantemente encontrava dificuldades para manter sua periodicidade e circulação. Deste modo, “juntando a ação às palavras”, a decidida militante oferece a redação do jornal a quantia de “cinco mil réis, equivalente a duas entradas de cinema”, diversão de que está decidida a privar-se “em favor da ‘Plebe’”, desejando que sua atitude viesse a inspirar seus companheiros de militância. Assim, Isa Ruti conclui: “O meu coração sensível de mulher contém, armazenado muito amor pelo ser humano. Desse amor vou dispor para dar o que eu poderia dar, se fosse homem e fumasse, em beneficio da ‘Plebe’” [9].
É interessante notar que os preceitos de feminilidade, assim como, a clara distinção de entre homens e mulheres, é mantida no texto de Isa Ruti. Mesmo estando em um ambiente tipicamente masculino – o espaço público – ela não anseia, em seu discurso, por ‘masculinizar-se’, acabando por transformar a sensibilidade atribuída à mulher, em um fator crucial de sua militância, um diferencial que teria apenas a contribuir com o movimento anarquista. Isto se torna mais claro quando, no final de seu artigo, Isa Ruti descreve o desenvolvimento de “um trabalho sobre o tema – ‘O amor como fator de progresso humano’”, visando oferecer este “em palestra pública, em beneficio do jornal”.
É perceptível que não há interesse em discutir a construção social do papel de mulher ou homem na sociedade, isso em termos culturais, mas as relações de poder que acabam imbricadas nestas construções. Isso se deve ao ideal de igualdade e individualidade pregadas pela doutrina anarquista, que acaba por permitir as mulheres envolvidas no movimento, um diferencial de luta por sua emancipação, se comparadas as feministas em atividade neste mesmo período histórico.
Entretanto, a militância anarquista feminina, refletida nos discursos produzidos nas páginas de A Plebe, não pode ser homogeneizada, nem o modo “adocicado” de escrita de Isa Ruti, tomado como padrão. Textos mais inflamados, que visam incitar os seus leitores a um “levante revolucionário” propriamente dito, são assinados por mulheres, mostrando a grande diversidade que foi a participação feminina nas páginas deste periódico.
Um exemplo de discurso incitador seria o assinado por Juliette Witheatname:

Dum lado, os que querem dominar, avassalar os seres, utilizá-los para seus fins próprios; do outro, aqueles que tentam torná-los livres, de erguê-los contra todos os despotismos, venham não importa de onde: da vontade de um só ou da de um agrupamento promovido à carga de impingir à coletividade, editais ou leis. É o sopro desses rebeldes que emana a força que derrubou todos as regimes passados e que, amanhã solapará o regime atual em que vivemos, apesar da potência de que dispões na riqueza e na ordem estabelecida, protegidas pelo seu baluarte, o exército, e encostadas a sua fiel auxiliar, a religião.[10]

A homogeneização da militância anarquista feminina nas páginas de A Plebe torna-se ainda mais inviável se levarmos em consideração que além da questão de gênero que envolve a produção de discursos desse periódico, também a outra questão precisa ser considerada: a geracional. Textos de Maria Lacerda de Moura, que neste período já contava com uma idade bastante avançada, coexistem com artigos como o de Alba Moscalega, que além de expor sua opinião sobre os conflitos que ocorriam na Europa, explicita nas páginas desse mesmo jornal que conta com menos de doze anos de idade [11].
Percebe-se, então, um maravilhoso mosaico de personalidades e militantes que utilizavam o periódico para expressarem suas opiniões e difundir o ideário anarquista.

O homem, a mulher, a militância e o amor

Mesmo com a Constituição de 1934 e a inclusão das mulheres no processo eleitoral, e o surgimento de inúmeras vagas de trabalho que eram destinadas a elas –como datilografas, telefonistas, professoras, entre outras -, o espaço público ainda não estava completamente conquistado, uma vez que a mulher encontra-se amarrada a um modelo de família que não acompanhava estas mudanças pelas quais a sociedade passava. Diante deste impasse, os anarquistas percebem dois “problemas” que atravancavam a emancipação feminina: a prostituição e o casamento indissolúvel.
A prostituição era tema constante nas páginas de A Plebe, sempre apresentada como uma “calamidade muito antiga”, e como uma cruel forma de “exploração” feminina, para a qual a mulher é obrigada a recorrer diante do sistema capitalista. Tal abordagem fazia com que os anarquistas conseguissem, no campo discursivo, desvincular o problema da prostituição do campo moral, e ligá-lo ao campo social, afastando-se de possíveis consonâncias com o discurso religioso, por exemplo.
A crítica a prostituição, nos discursos veiculados por A Plebe, caminha paralelamente, chocando-se por vezes, com a crítica ao modelo de família burguesa nuclear, onde o homem destaca-se como o “cabeça do casal”.
Em um artigo publicado em março de 1935, e assinado por De Noedul, encontramos uma interessante discussão sobre o espaço da mulher nas famílias e o respaldo legal deste. O autor do artigo tece críticas ao fato de que em muitas civilizações a mulher tem basicamente dois papéis: o de dar prazer ao homem e de dar-lhe também filhos. Neste contexto, apresenta um interessante ponto de reflexão para seus leitores: “a legislação defende a ‘família’, não o indivíduo da família” [12]. Assim, qual seria a importância da família, se os indivíduos pertencentes a ela não são importantes? Para justificar essa explanação de não-defesa do indivíduo dentro do ambiente familiar, ele escreve:

Se uma das filhas é seduzida (no sertão brasileiro), perde o direito ao titulo de família e é considerada “mulher atoa”, isto é, perde o direito de se constituir família honesta e passa para o uso da coletividade masculina.(...)
Enquanto que o homem é considerado (pela lei) um ser dotado de inteligência e, portanto, suscetível de errar, a mulher é considerada um ser irracional (...). [13]

Apesar da indignação expressa no trecho acima, de modo algum o autor deste artigo desejava apresentar as mulheres enquanto vítimas das circunstâncias. Ele afirma nas linhas seguintes: “E de quem é a culpa, no entanto: da mulher (...)”. Apesar de iniciar seu texto apontado um descaso legal para com as mulheres, citando exemplos disso a partir do sertão brasileiro, o autor crê que apenas poderá haver algum tipo de mudança, não somente a partir de homens como ele, que percebem e indignam-se com a injustiça, mas a partir das próprias mulheres, que necessitariam construir uma nova consciência sobre seu espaço e seu papel social, engajando-se nas mudanças que seriam necessárias para uma sociedade mais justa.

(...) [A] própria mulher que esquecera o seu papel de companheira do homem, aceita, submissa, o papel de fêmea. Ela é que tem por seu próprio esforço de elevar-se até o homem emancipando-se, como os escravos o souberam também. [14]


Reafirma, ainda, com veemência a importância da participação da própria mulher em sua emancipação, a partir de um exemplo entre mãe e filho:

Os homens que a classificaram rebaixando-a, são filhos seus, foi ela que lhes ensinou as primeiras palavras, que “lhes mereceu” o primeiro sorriso e o primeiro amor. E, são “senhores, a julga-la, classificando-a como coisa e não como ser humano, é revelia dela própria que, incapaz de reagir recolhe-se em seu próprio sofrimento com a passividade do bruto.[15]

Assim, as mulheres apenas estariam fora das leis dos homens por vontade própria, por apatia, por passividade e por medo de levantarem-se contra sua própria submissão. Esse posicionamento é por vezes justificado, por exemplo, no discurso proferido pela militante apenas identificada pelas iniciais O. F. , por ocasião de um piquenique comemorativo organizado pelo próprio jornal, e que foi transcrito em suas páginas. Neste constata que “A sociedade não intervem entre escrava e senhor pra proteger a parte mais fraca e chamar a parte forte a razão (...)” e é neste exato ponto que o papel dos anarquistas na luta pela emancipação feminina tornava-se, de acordo com seu discurso, imprescindível: “Cabe a nós anarquistas, amantes da liberdade e da justiça reabilitar a mulher tão oprimida(...)”.[16]
O papel redentor do anarquismo apresentado nestes discursos é claro: a mulher não pode alcançar sua emancipação sem que ela própria assim o deseje, mas para que ela possa perceber as desvantagens de sua situação, precisa tomar consciência de seu lugar enquanto igual e companheira do homem. Assim, para que ela seja realmente capaz de “levantar-se” contra este modelo social seria necessário que esta mulher aperfeiçoasse-se moral e intelectualmente, e isso seria possível através da doutrina anarquista.
Deste modo, em muitos artigos de A Plebe é possível encontrar críticas a mulher como propriedade do homem, uma vez que a própria noção de moral anarquista baseava na idéia de liberdade, como podemos ver na frase a seguir, retirada de um artigo intitulado “A moral social na sociedade socialista libertária”: “A solidariedade é a primeira lei humana – dizia Bakounine[17] – a liberdade eis aí a segunda” [18].
E é com base neste preceito de liberdade, tão difundido pelos pensadores e ativistas anarquistas que se viria discutir o casamento indissolúvel - o modelo de família burguesa -, dentro das páginas de A Plebe.

Os conceitos morais de nossos avós já bruxuleiam como luz prestes a se apagar. Eram baseados na ignorância feminina conservada propositalmente para evitar esclarecimentos. Atualmente estas idéias fossilizadas existem nos países católicos, mas a irradiação dos conceitos novos, partidos dos povos mais adiantados, irão gradualmente iluminando a mentalidade feminina, que acordará envergonhada do longo sono em que permaneceu insciente do opróbrio que por séculos lhe pesou em cima. [19]

Era preciso lançar rapidamente novos posicionamentos políticos e morais que dessem conta da solução para o modelo de família nuclear baseado no casamento indissolúvel, assim como, para erradicar a prostituição. Era preciso apontar um novo espaço seguro para as mulheres, enquanto iguais e livres, como mandava a tradição anarquista. Assim inicia-se a difusão das teorias de amor livre e a educação sexual.
O amor livre era, em verdade, a crítica a família burguesa e a instituição católica do casamento, tachados de “superstição e egoísmo” de uma “vida em sociedade” [20]. Este amor livre estaria ligado ao direito ao amor como um sentimento natural, “menos a uma proposta de variação de parceiros, do que a crítica a institucionalização dos sentimentos em formas rígidas e envelhecidas” [21]. Era a maneira com que os libertários, assim como as libertárias questionavam a disciplinarização do amor e do sexo.

Nos entendemos amor livre o direito de amar livremente para ambos os sexos, o direito da mulher escolher livremente o eleito de seu coração, sem encontrar no caminho da suas inclinações os obstáculos da tirania paterna ou preconceitos de uma sociedade baseada na mentira religiosa, na mentira sexual e na mentira do amor.[22]

Nas páginas de A Plebe muitos discursos neste sentido foram proferidos por mulheres militantes, chamando os demais leitores a uma mudança de atitude em relação ao matrimônio indissolúvel, apontando para possíveis resistências de militantes anarquistas que, certamente sentiam-se desconfortáveis diante de tais afirmações.
O trecho a seguir foi assinado por Erna Gonçalves, em um artigo intitulado “Amor livre (a minha opinião)”:

Amigos! Nós, que somos unidos numa compreensão sã das coisas, que não nos escondemos quando ouvimos discutir questões do matrimonio e que, nas prostituídas, vemos vitimas de uma situação criada pelos absurdos da exploração de sentimentos, nossas irmãs, nossas companheiras, não podemos temer o amor livre, porque temos consciência dos nossos deveres, deveres de anarquistas.[23]

É interessante perceber que, para este artigo escrito por Erna, surge uma resposta escrita por outro anarquista que assinava como Amilcar, e que elogia a atitude da “camarada”, que teve “coragem para dizer em público que não temes o amor livre”, arrematando que “esta franqueza é admirável” [24].
Estas palavras induzem a conclusão que, apesar das discussões sobre amor livre estarem presentes nos jornais anarquistas desde o final do século XIX e o início do século XX, ainda não haviam alcançado uma grande adesão entres os militantes e as militantes anarquistas em 1935, estando mais restritas ao meio discursivo do que o prático. Mostrando a dificuldade existente, entre os próprios anarquistas, em romperem com a norma social estabelecida.
É interessante perceber que a justificativa mais forte para que o amor livre passasse a ser a regra do novo modelo de sociedade almejado pelo movimento anarquista, é a felicidade.

Há um ideal humano. Todos sentem esse ideal sem distinção de raças, sexos, idades, todos querem atingi-lo. Este ideal é a felicidade.(...)
É verdade que cada indivíduo tem um modo de encarar a felicidade. Justamente por isso só se pode ser feliz sendo livre.[25]


Não há dúvidas que o amor livre, neste momento histórico, apresenta-se como uma grande ruptura, especialmente para as mulheres, pois acaba por tirar da mulher um diferencial no âmbito social, de convivência e status: o título de “mulher honesta”. Mesmo que o amor livre prometesse o fim de seu sujeitar-se a “escravidão” de um casamento arranjado pela família, em um relacionamento sem amor, onde a mulher não era vista como uma companheira, uma igual na relação, significaria abandonar toda a educação burguesa que tivera (mesmo não pertencendo diretamente a esta classe) e perder a “respeitabilidade”, a “honra” diante do restante da sociedade. O amor livre propunha romper com a religião, o casamento indissolúvel, com as leis, e com a moral vigente.
Para que a mulher pudesse estar preparada para estas mudanças tão radicais, os anarquistas complementavam seu projeto de amor livre com o projeto de educação sexual, pois “Só assim faremos obra de educação e preparemos a mulher livre do futuro”[26].
Em A Plebe encontram-se resenhas de livros que tratam da Educação Sexual, a partir de uma ótica libertária, como por exemplo, o livro intitulado “Educação Sexual” de José de Albuquerque, onde comenta-se que “(...) por ser pecado, achavam que as moças e os rapazes deveriam ser criados com absoluta ignorância dos assuntos referentes ao sexo e as funções sexuais” [27], mas que proporcionar este tipo de educação, não seria banalizar o sexo, mas tornar possível um conhecimento que trouxesse segurança, tanto as famílias, quanto as jovens e os jovens, uma vez que estariam esclarecendo a estes sua própria sexualidade.
No entanto, a sociedade ainda encontrava-se receosa para este tipo de assunto dentro da âmbito familiar.

Ensinar os filhos como nascem e qual a razão de ser de certos fenômenos que se manifestam em seus organismos, evitando, muitas vezes, desarranjos que provocam verdadeiros infortúnios, era um crime, era a desonra, era levar a família à degradação e ao despudor... [28]

E conclui:

É uma gama de verdadeiros conselhos às mães, aos pais, e sobretudo aos jovens de ambos os sexos que é preciso cerrar de todos os cuidados e de todos os respeitos que merecem ao entrarem nos portais da vida em que vão ter uma função criadora.[29]


Além da divulgação de livros, haviam divulgações de eventos organizados pelo Circulo Brasileiro de Educação Sexual, que iam desde programas de rádio, distribuição de folhetos, até a Semana Paulista de Educação Sexual. Entretanto as atividades desse grupo não eram constantemente vistas com bons olhos pela sociedade e pelo governo do período, acarretando na proibição da exibição do filme “A Educação Sexual dos Diversos Períodos da Vida”, promovido pelo Círculo. Neste filme, além das informações sobre as diversas fases da vida do ser humano, também havia orientações de como evitar doenças, por exemplo, as “moléstias venérias” [30].
Estas campanhas pela educação sexual tão caras aos anarquistas, eram também seguidas por campanhas realizadas pela própria Igreja Católica, que desde 1931, com a sansão do Papa, proíbe formalmente os pais católicos e professores de esclarecerem os filhos ou alunos – de ambos os sexos - a respeito de assuntos sexuais, sendo que somente os padres ficariam autorizados, em casos urgentes, a dar explicações sobre o tema.
Esta normatização imposta pela Igreja Católica, assim como seus valores morais de pureza e castidade, eram constantemente motivo de pesadas críticas por parte dos e das anarquistas. Entretanto, estes militantes, mesmo que inconscientemente, partilhavam dos valores vigentes de sua época. Um bom exemplo disso, pode ser a resenha publicada em A Plebe, sobre o livro “Nancy – La de los ojos Pardos”, do autor Georges Cenardo.
De acordo com a resenha, este se trata de um romance, cujo personagem principal é uma moça chamada Nancy, “fruta apetitosa da cobiça dos homens”, que precisava “auxiliar a manutenção da casa de seus pais”, e que para tanto, sai em busca de trabalho. Entretanto, graças as seus atributos físicos acaba por ficar “entre dois dilemas terríveis: subir, ganhar posições cedendo aos desejos, as vezes degeneradas manifestações de temperamentos viciosos dos chefes, ou forçada a abandonar o trabalho” [31].
Entre os mais variados infortúnios de uma “sociedade burguesa”, Nancy “Passa por tudo isso como uma salamandra pelo fogo sem se queimar”, mantendo sua pureza e não se entregando sem amor. Ao final, como recompensa “ao seu martírio, Nancy encontra um moço bom que por ela se apaixona e a faz sua esposa” [32].
O final do romance aproxima-se do ideal de amor burguês, mas que é muito bem comentado no jornal:

Valha, porem, a intenção do autor que, num escrito poético e romântico faz nascer num pantanal de lama e vicio, de crime e vergonha, miséria física e moral, uma flor de pureza rutilante e imaculada.[33]


Seria a busca constante dos e das anarquistas, não pela liberação sexual, mas sim pela liberação dos sentimentos, indo contra a “sociedade onde o amor se vende e os sentimentos se prostituem” [34]. Não é um apelo a promiscuidade, muito pelo contrário, mas a busca por uma sociedade em que os sentimentos possam ser o principal motivo da vida a dois, e onde a mulher possa tornar-se parte ativa e respeitada, mesmo que o caminho para tanto seja repleto de dissonâncias e contradições.

O corpo masculino e a nova sociedade

Dentro do discurso anarquista expresso em A Plebe, a primeira impressão que se pode ter é de que o papel do homem está plenamente definido, e que resta então, discutir a questão feminina, o lugar da mulher nesta nova sociedade que está sendo idealizada.
Mas, em um olhar mais apurado, é possível perceber que há sim uma discussão sobre a sexualidade masculina, especialmente enquanto parte do processo reprodutivo humano.
Entre os anarquistas, especialmente na década de 1930, muito se discutia sobre a maternidade, não para negar o papel das mães, mas na defesa de que se tornar mãe poderia ser uma opção, e não uma obrigação. Assim, o momento mais propício e as melhores condições para a maternidade poderiam, e deveriam, ser escolhidas.
Muitos membros do movimento anarquista concordavam com este posicionamento, e promoviam discussões em prol da legalização do aborto. Outros, apesar de concordarem com a opção de se poder escolher o momento certo, tanto para a maternidade quanto para a paternidade, passam a discutir um método que julgavam mais seguro que o aborto - por ser este considerado o último recurso no controle de natalidade, uma vez que precisaria ser realizado mediante muitos cuidados e ainda nos primeiros meses de gestação –, eles discutem a vasectomia.
Em um artigo para A Plebe, Marques da Costa relata o drama vivido por alguns amigos e suas companheiras na Europa, que haviam sido presos pela polícia francesa sob a acusação de “provocação de abortos” e de “mutilação de órgãos genitais” – a vasectomia -, previsto no Código Penal Francês do período.
O texto, além de desejar fazer denúncia sobre a prisão dos anarquistas na Europa, este militante também acaba por homenagear as atitudes desses homens, tratando-os como exemplos para a cultura anarquista:

Que estas linhas, sejam pois, uma homenagem – bem merecida, por certo! – a fé inquebrável no ideal anarquista de que os companheiros Barthozeck, Prévotel e Lapeyre acabaram de dar prova, ao mesmo tempo que da propaganda dessa formula preconizada por Barthozeck de esterilização dos órgãos genitais do homem, que tem, indiscutivelmente, o direito de não assumir responsabilidades paternais, se as suas atividades político-evolucionárias fizerem dele um candidato a constantes perseguições, à prisão continua e a deportação e expulsão sistemática com que os governos de todos os paises se vingam dos que conscientemente e irredutivelmente os criticam e acusam e combatem.[35]

A busca por um controle da natalidade encontra apoio na premissa anarquista que rege seus discursos sobre sexualidade: a liberdade. Neste caso a liberdade de não precisar assumir as funções paternais, e poder estar dedicando-se totalmente a causa anarquista. Para tanto os métodos anticoncepcionais, assim como o aborto, são temas muito discutidos. O que convém ressaltar aqui, é a discussão sobre a vasectomia, que ainda na atualidade é vista com receio pela maioria dos homens. Entretanto, o autor do artigo afirma: que “a vasectomia – não está de mais repeti-lo – não é castração; não é a abdicação testicular” [36]. Esta é indubitavelmente uma discussão avançada para o período, especialmente para o Brasil.
O que é mais interessante perceber é que a vasectomia é vista como uma solução para o risco do aborto, além de ser também uma opção masculina contra a natalidade, sua livre opção de ser ou não pai.
Muito comumente encontra-se o discurso sobre o controle da natalidade que insidem sobre o corpo feminino, como se fosse apenas obrigação da mulher dar conta dos métodos anticoncepcionais ou decidir pela maternidade. Esta discussão proposta nas páginas de A Plebe mostra um interessante deslocamento, onde também os homens encontrar-se-iam aptos a decidirem pela geração ou não de uma nova vida. E se caso houvesse discordância entre o casal no que se referiria ao desejo ou não de se ter filhos, o amor livre seria a solução para o problema: “O homem que não quiser se pai pode evitar de o ser. A mulher que deseje, que anseie, que queira ser mãe, fica sempre o recurso de buscar um homem que a faça engravidar”, pois “somos partidários da liberdade”.[37]

Considerações Finais

Há muito ainda para ser explorado no que se refere ao corpo e a sexualidade dentro dos discursos anarquistas divulgados em sua imprensa libertária, e esta discussão não pode, de modo algum, ser vista como conclusiva ou acabada, o que torna o tema ainda mais interessante e sedutor.
No entanto, mergulhar nestes discursos é perceber que os anarquistas e as anarquistas compreendiam muito bem que o corpo também pode ser um modo de fazer política, e que a liberdade passaria, inegavelmente por ele, quebrando com a idéia de “corpos dóceis” para o trabalho e para a família, para a sociedade disciplinadora. Assim, temas como amor livre, maternidade, aborto, prostituição, vasectomia, não poderiam estar ausentes, de forma alguma, tanto em sua doutrina como em sua imprensa libertária.
Mas discutir o conteúdo desses discursos nos jornais pode trazer também algumas armadilhas, pois estes não refletem toda a discussão e o debate empreendido no meio anarquista do período. Exemplos são as discussões propostas pela professora Maria Lacerda de Moura, que em sua obra “A Mulher é uma Degenerada”, que discute a reivindicação do prazer sexual também pela mulher, o que não é visto com freqüência nos debates nas páginas de A Plebe. Este tema é substituído pela valorização do companheirismo e do sentimento em uma relação, em detrimento ao lado sexual, no que se refere ao prazer.
Obviamente, cada jornal libertário tinha seu público alvo, seus colaboradores, e seus objetivos que precisam ser considerados, o que vem abrir espaços para que se lancem inúmeros outros olhares sobre esta temática, que neste artigo, apenas pode ser levemente explanado, mostrando que as discussões atuais sobre sexualidade e corpo, não são tão inéditas quanto aparentam.

Referências Bibliográficas

GOLDMAN, Emma. O indivíduo, a sociedade e o Estado. São Paulo: Imaginário, 1998.

PISCITELLI, Adriana. Reflexões em torno do gênero e feminismo. In: COSTA, C. de L. e SCHMIDT, Simone P. (orgs). Poéticas e políticas feministas. Florianópolis: Mulheres, 2004.

PINTO, Céli Regina Jardim. Uma História do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

RAGO, Margareth. “Es que no es digna la satisfacció de los institos sexuales?”: Amor, sexo e anarquia na revolução espanhola. In: Letralivre – revista de cultura libertária, arte e literatura, Rio de Janeiro, n.6, p. 09-16, 2002.

SILVA, Rodrigo Rosa. As idéias como delito: a imprensa anarquista nos registros do DEOPS-SP (1930-1945). In: DEMINICIS, Rafael Borges e REIS FILHOS, Daniel Aarão. História do Anarquismo no Brasil vol. I. Niterói – RJ: Mauad X, 2006, p. 113-132.

RAGO, Margareth. Do amor Livre. In: Revista Libertárias: Revista de Cultura Libertária, n. 03. São Paulo, set. 1998, p.11.


[1] GOLDMAN, Emma. O indivíduo, a sociedade e o Estado. São Paulo: Imaginário, 1998.
[2] PISCITELLI, Adriana. Reflexões em torno do gênero e feminismo. In: COSTA, C. de L. e SCHMIDT, Simone P. (orgs). Poéticas e políticas feministas. Florianópolis: Mulheres, 2004.
[3] PINTO, Céli Regina Jardim. Uma História do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.
[4] Nascida em Minas Gerais em 1887, em uma família modesta, foi uma ativista anarquista e professora. Escreveu muitos livros onde deixava clara sua posição em prol da emancipação feminina, defendendo desde a educação sexual ao amor livre.
[5] RAGO, Margareth. “Es que no es digna la satisfacció de los institos sexuales?”: Amor, sexo e anarquia na revolução espanhola. In: Letralivre – revista de cultura libertária, arte e literatura, Rio de Janeiro, n.6, p. 09-16, 2002.

[6] SILVA, Rodrigo Rosa. As idéias como delito: a imprensa anarquista nos registros do DEOPS-SP (1930-1945). In: DEMINICIS, Rafael Borges e REIS FILHOS, Daniel Aarão. História do Anarquismo no Brasil vol. I. Niterói – RJ: Mauad X, 2006, p. 113-132.
[7] Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo: órgão de repressão política utilizado no governo Vargas para coibir e controlar a existência de focos políticos contrários ao governo instaurado.
[8] Nasceu em 1869, na Rússia, mas em 1886 migrou para a América, onde trabalhou como operária. Tida como uma “oradora nata” realizou inúmeras conferências em prol da emancipação feminina. Foi presa várias vezes. Participou como colaboradora em diversos jornais anarquistas, até que passou a publicar sua própria revista chamada Mother Earth. Morre em fevereiro de 1940.
[9] A Plebe. São Paulo, 05 de janeiro de 1935.
[10] A Plebe. São Paulo, 27 de abril de 1935.
[11] A Plebe. São Paulo, 26 de outubro de 1935.
[12] A Plebe. São Paulo, 30 de março de 1935.
[13] Idem.
[14] A Plebe. São Paulo, 30 de março de 1935.
[15] Idem.
[16] A Plebe. São Paulo, 28 de setembro de 1935.
[17] Refere-se a Michael Bakunin, importante teórico e militante anarquista russo.
[18] A Plebe. São Paulo, 23 de novembro de 1935.
[19] A Plebe. São Paulo, 08 de junho de 1935.
[20] A Plebe. São Paulo, 19 de janeiro de 1935.
[21]RAGO, Margareth. Do amor Livre. In: Revista Libertárias: Revista de Cultura Libertária, n. 03. São Paulo, set. 1998, p.11.
[22] A Plebe. São Paulo, 17 de agosto de 1935.
[23] A Plebe. São Paulo, 19 de janeiro de 1935.
[24] A Plebe. São Paulo, 02 de março de 1935.
[25] Idem.
[26] A Plebe. São Paulo, 23 de novembro de 1935.
[27] A Plebe. São Paulo, 25 de novembro de 1935.
[28] Idem.
[29] Ibidem.
[30] A Plebe. São Paulo, 06 de junho de 1935.
[31] A Plebe. São Paulo, 30 de março de 1935.
[32] Idem.
[33] Ibidem.
[34] A Plebe. São Paulo, 02 de março de 1935.

[35] A Plebe. São Paulo, 08 de junho de 1935.
[36] Idem.
[37] A Plebe. São Paulo, 09 de junho de 1935.

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